sábado, 7 de novembro de 2015

Teologia e compaixão

Por Ricardo Gondim

A narrativa bíblica não é unânime ao tentar responder o por quê do sofrimento humano. Nos textos que fazem parte do Pentateuco (Torá), bênção e maldição dependem fundamentalmente do cumprimento da lei. O capítulo clássico de Deuteronômio 28 atrela desobediência e obediência a todos os males e todas as bênçãos divinas. Fica claro: se algum judeu procura viver sem grandes problemas que cuide de obedecer os pormenores dos mandamentos.
Essas premissas não se sustentaram ao longo da história. No salmo 44, o poeta reclama com Deus. Ele está bravo. O Senhor vendeu o seu povo por uma ninharia e não lucrou nada com isso. O salmista prossegue em sua indignação, alegando que Israel vinha cumprindo o seu lado, mas que isso não adiantou nada:
Tudo isso aconteceu conosco, sem que nos tivéssemos esquecido de ti, nem tivéssemos traído a tua aliança. Nossos corações não voltaram atrás, nem os nossos pés se desviaram da tua vereda. Todavia, tu nos esmagaste e fizeste de nós um covil de chacais e de densas trevas nos cobriste.[44:17-19].
Depois do exílio babilônico, os judeus buscaram em várias teorias alguma explicação. Era preciso uma lógica que justificasse Deus abandonar a menina dos seus olhos. Como essa menina, objeto de seu amor ficou à mercê de inimigos implacáveis e cruéis?  Se a lógica do cumprimento da Torá não servia, duas obra despontaram: Jó e Eclesiastes.
No Eclesiastes, a narrativa está carregada de pessimismo e fatalismo. Em diversas ocasiões, o autor (ou autores, já que alguns biblistas consideram o Eclesiastes uma coletânea de textos e não a produção de uma só redator) chega às raias do niilismo moderno: Refleti nisso tudo e cheguei à conclusão de que os justos e os sábios, e aquilo que eles fazem, estão nas mãos de Deus. O que os espera, se amor ou ódio, ninguém sabe. Todos partilham um destino comum: o justo e o ímpio, o bom e o mau, o puro e o impuro, o que oferece sacrifícios e o que não oferece. O que acontece com o homem bom, acontece com o pecador; o que acontece com quem faz juramentos, acontece com quem teme fazê-los. Este é o mal que há em tudo o que acontece debaixo do sol: O destino de todos é o mesmo. O coração dos homens, além do mais, está cheio de maldade e de loucura durante toda a vida; e por fim eles se juntarão aos mortos [Eclesiastes 9:1-3].
Para o Eclesiastes a vida é absurda. Não é possível distinguir, nos sofredores, que são os bons cumpridores da Torá e os ímpios. Quem sacrificou a Deus e quem oprimiu Israel se sujeitam ao tempo e ao acaso da mesma maneira.
Já na prosa e poesia de Jó as pessoas que tentaram especular sobre os por quês dos atos divinos erraram. A mulher, os amigos e o próprio Jó buscaram respostas, mas acabaram sem entender a mente do guardador de Israel. Por que ele age tão sem critérios na distribuição dos seus favores? Afinal de contas, o sofredor, Jó, é homem justo e temente a Deus. Morrem seus filhos e ele perde tudo. Ninguém conseguiria entender como uma divindade poderosíssima aposta com um adversário teoricamente inferior. Se Deus gerencia os sofrimentos, não existe explicação para ele envolver a descendência de um justo numa disputa tola, que sequer diz respeito à humanidade.
Jó não se conforma. Ele se rebela, esperneia, grita, contra a sorte que caiu sobre a sua cabeça. Depois de expor sua revolta, Deus se alonga num discurso vago. O Senhor não oferece explicação razoável, apenas conjectura sobre seu poder de criar o Universo. Os porquês divinos não satisfazem.
Assim, como lidar com o lamento de tanta gente anônima? Como olhar, em retrospectiva, as monumentais tragédias de pessoas, famílias e gerações?
Acredito que o texto bíblico pode ajudar pela via negativa. Pelo menos três respostas devem ser evitadas diante do mal.
1. Colocar o sofrimento na conta dos mistérios insondáveis da divindade. Quando nos vemos em acidentes trágicos, parece fácil escapar com a afirmação de que aquele infortúnio faz parte dos mistérios e que não convém perder tempo investigando sobre o que nunca saberemos a resposta. Tal postura pode refletir, muitas vezes, uma fuga. Parece mais confortável dizer: Deus quis assim e sucumbir ao fatalismo. Também, demolir o conceito antigo de que uma lei garantiria bem estar, requer coragem. Muitos se resignam, pois sair de uma cerca presumivelmente capaz de nos guardar do mal significa jogar-se no descampado da contingência.
Jó ensina, entretanto, que indagar, e resistir internamente, na hora do sofrimento nunca é pecado. (Em Isaías, o próprio Deus ordena que o povo o questione: Vinde e argui-me.) Há algum tempo, uma pessoa me provocou: – De onde vem sua petulância de querer repensar tudo? Em Jó, aprendemos: não existe problema em repensar as ideias que me deram uma falsa sensação de segurança. Se os alicerces ruíram na dor, eles não tinham a solidez que imaginávamos na bonança. Não creio em fé que se acaba diante de questionamentos difíceis. Se alguma convicção não se sustenta na frente de quem acabou de sair de uma situação infernal como Auschwitz, Ruanda ou Gaza, ela não merece ser mantida. Se a morte desnecessária de uma criança esvazia uma certeza, talvez ela não mereça sequer continuar como convicção.
O filósofo alemão Leibniz dizia que a visão de um Deus que encobre seus atos malévolos, o tornaria pior do que Calígula, que escrevia as leis em letras minúsculas e mandava publicá-las em um lugar tão alto, que ninguém as conseguia ler. De fato, um Criador que age na penumbra, que não se abre para o diálogo, não passa de um monstro. Perguntas podem levar a novas perguntas e essas indagações, a mais dúvidas. E mesmo que continuemos sem resposta definitiva, vale o aprofundamento das questões. Fascina buscar novas respostas. O sofrimento, portanto, talvez nos leve a questionamentos sem fim. Esperemos que a última resposta seja, quem sabe, o convite a um abraço.
2. Dissimular o argumento com frases piedosas. Entre religiosos, o debate se esvazia muitas vezes antes dos conteúdos serem elaborados. Os sustos que uma indagação mais aguda levanta geram espanto. Alguns preferem a ilusão à realidade. Os amigos de Jó ensinam ao longo do texto que não adianta querer argumentar com quem já tem as certezas estabelecidas. Depois que rotularam e causaram um péssimo ambiente, os amigos de Jó não estavam dispostos a ouvir mais nada. De fato, quando o dogma é internalizado como verdade, qualquer tentativa de chamar ao bom-senso esbarra em escrúpulos piegas. Esta é a fé mais pueril. “Creio assim e não admito que você tente me dissuadir do contrário”. Ponto final.  O livro de Jó instiga: Por que não se valer da crise para testar se as certezas se sustentam quando o chão treme e o vendaval leva tudo com ele?
Se Pensadores judeus repensaram antigas concepções após o exílio babilônico, após os pogroms da Idade Média e após o holocausto nazista, os pensadores cristãos devem fazer o mesmo. Após Auschwitz não foi mais possível pensar em Deus como o maquinista que mantém o trem da história nos devidos trilhos; depois de Ruanda a crise do teísmo só se agudizou.
Jesus, ciente dos primitivos arranjos teológicos para enfrentar o sofrimento, descartou a lógica de causa e efeito da lei. Ele não foi um fatalista. O Nazareno intuiu corretamente: quem sofre não quer teologia, precisa tão somente de compaixão. A estrada que a teodiceia tentou produziu mais aporismos. Está claro: nenhum sistema consegue oferecer todas as respostas para a morte estúpida e desnecessária de milhões ao redor do mundo.As guerras matam inocentes. O acúmulo de riqueza joga comunidades inteiras no ralo. O ódio religioso chacina. Portanto, ao lidar com o sofrimento as três respostas da Bíblia hebraica permanecem inadequadas. Obediência ou desobediência (Torá), aleatoriedade ou contigência (Eclesiastes) e ignorância diante da dor (Jó) fracassaram também em gerar compaixão. Explicar o porquê não oferece necessariamente colo, abraço.
Cabem no mundo de hoje pelo menos duas vias: uma que misture ousadia de questionar e compaixão de acolher; e a outra que priorize justiça como alvo e paz como destino. Ao nos debruçarmos sobre a estúpida banalização do mal, sobra inquietação.  Nada e ninguém justificam a barbárie. Sendo assim, se nossas angústias suscitam novas perguntas, não esqueçamos: carecemos de regaço mais do que infinitas argumentações.
Soli Deo Gloria

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